*Por Luciano Sathler
A pandemia impôs o distanciamento social a mais de 1,5 bilhão de estudantes e 63 milhões de professores em todo o mundo, que ficaram impedidos de frequentar os espaços físicos de escolas e instituições de educação superior por um espaço substancial de tempo.
O regime emergencial de aulas remotas ora adotado pelas escolas é algo muito diferente de um programa de educação a distância (EAD) de boa qualidade. Trata-se de uma situação inédita na escala e por acontecer em uma época com ampla gama de recursos digitais, ainda que disponíveis de forma desigual entre os diversos extratos sociais.
A educação básica brasileira sofreu os efeitos da pandemia em meio ao alvorecer de uma mudança de larga escala a ser empreendida com a adoção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No campo da EAD, vale lembrar que o Ministério da Educação homologou as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em 2018.
Dentre as mudanças está a permissão de que as atividades realizadas a distância possam contemplar até 20% da carga horária total dos cursos diurnos. Além disso, pode incidir tanto na formação geral básica quanto, preferencialmente, nos itinerários formativos do currículo – uma inovação da organização curricular trazida pela BNCC.
Para alunos do turno noturno do ensino médio essa carga horária pode chegar a 30%. Na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) é possível oferecer até 80% do curso a distância, desde que haja suporte tecnológico – digital ou não – e pedagógico apropriados. Fora da insegurança pandêmica não há nenhuma regulamentação para a EAD ser aplicada no ensino fundamental e na educação infantil.
O novo ensino médio traz novas possibilidades muito promissoras para a educação brasileira. A ampliação da carga horária são desafios à gestão escolar. E para serem superados, exigem a adoção de abordagens que privilegiem a aprendizagem mais aberta, flexível e personalizada.
É possível aproveitar as possibilidades de flexibilidade de tempo, de espaço e de ritmo nos estudos que a EAD traz para permitir a definição de trilhas personalizadas de aprendizagem. A nova arquitetura pedagógica tem impactos na estrutura organizacional da escola e no modelo de atuação.
O novo ensino médio pode colaborar com o conceito mais amplo de educação e formação técnica e profissional, que é considerada parte integrante da educação e da aprendizagem ao longo da vida e refere-se a todas as formas de aprendizagem de conhecimentos, aptidões e atitudes relacionadas com o mundo do trabalho.
No momento, o mundo vivencia e tenta superar uma situação emergencial, onde as respostas ao distanciamento social são as possíveis, ainda que longe do ideal. Num esforço, considerado de caráter humanitário, milhares de escolas brasileiras lutam bravamente para manterem a oferta de atividades a distância para crianças, adolescentes e jovens nesse período.
Para tentar alinhar as práticas nesse regime presencial, o Conselho Nacional de Educação publicou um parecer sobre reorganização dos calendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da covid-19, que pode ou não ser adotado pelos entes federados.
Para crianças da educação infantil ou das séries iniciais do ensino fundamental há programas em que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) são crescentemente adotadas pelas escolas junto a essas faixas etárias de uma maneira complementar ao presencial, para enriquecer as relações de ensino-aprendizagem e promover a cultura digital.
Um programa de EAD de boa qualidade exige que os docentes sejam previamente capacitados para atuarem de forma competente nesse novo universo. Alunos e professores precisam contar com suporte técnico e administrativo adequados. A concepção dos currículos e dos materiais didáticos deve levar em consideração as características intrínsecas ao modelo pedagógico adotado.
Por exemplo, é preciso definir qual a frequência, duração e objetivos das atividades síncronas a distância – quando professor e aluno estão em comunicação simultânea, por videoconferência, texto ou áudio.
O tamanho da turma acompanhada e a carga horária atribuída ao docente para esse trabalho na EAD são aspectos a serem levados em conta. Pois a abrangência e a profundidade que caracterizam a mediação que se estabelece pelo diálogo humano são as pedras de toque que vão indicar o maior ou menor desempenho da aprendizagem. É nessa variável que a escola se diferencia de um mecanismo virtual de busca, de uma editora ou de uma emissora de televisão.
As imagens acima apresentam uma hierarquia da interação para colaborar com a organização de cursos ou unidades curriculares em EAD, com atenção ao interesse e atitude dos estudantes e educadores (MOORE e KEARSLEY, 2007).
Uma das características da EAD é a perda da privacidade do espaço da sala de aula. Alguns docentes consideram que a liberdade acadêmica é comprometida quando as atividades que desenvolvem com seus alunos são expostas nos meios digitais. Na prática, o que se observa é que os bons professores tornam-se ainda mais admirados quando contam com o suporte adequado e se dedicam com criatividade à realização de cursos não presenciais.
As formas de entrega do conteúdo e os meios disponíveis para a interação entre professores e alunos são recursos da maior importância. Apesar do louvável esforço de gestores, professores e corpo administrativo, talvez esses sejam os aspectos mais preocupantes do momento atual do regime emergencial de aulas remotas. Um problema que não é exclusivo das escolas brasileiras.
Muitos estudantes não tem acesso à internet ou não conseguem largura de banda suficiente para que possam utilizar a rede em seus estudos. Essa dificuldade se soma à falta de computadores, tablets e equipamentos de telefonia móvel que permitam a participação em aulas e o desenvolvimento de outras atividades pedagógicas por meios digitais.
Por isso, a Unesco recomenda como algumas das possíveis alternativas o uso de canais de TV, a distribuição de materiais impressos, o empréstimo de equipamentos e a liberação sem custos dos serviços de conexão.
A desigualdade do acesso às TIC costuma se fazer sentir nos lares onde se concentram os maiores problemas da chamada crise de aprendizagem. Desde que as matrículas na educação básica foram universalizadas se observa que muitos dos alunos chegam ao final de sua jornada na escola com sérios déficits em relação ao que deveriam ter aprendido.
Por exemplo, dos jovens que concluíram o ensino médio em 2017, somente 29,1% demonstraram ter o nível adequado de aprendizagem em língua portuguesa e 9,1% em matemática. São dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2017, divulgados pelo Ministério da Educação e monitorados pelo Movimento Todos pela Educação.
Um espelho digital
A EAD explicita o que acontece em uma sala de aula. É como se colocássemos a escola diante de um espelho digital. Os primeiros espelhos feitos pelo homem eram de pedra polida ou de obsidiana de vidro vulcânico preto, há cerca de 6.000 anos.
Os antigos egípcios, gregos e romanos costumavam fabricar espelhos de cobre e bronze polidos. Somente em 1835 é que foi desenvolvido um espelho prateado semelhante aos que usamos atualmente, que hoje são produzidos pela aplicação de alumínio diretamente no vidro.
Atualmente, no universo das telas nas quais nos vimos, uma tela de TV 4K é capaz de revelar detalhes imperceptíveis a olho nu. A evolução tecnológica permitiu que nos víssemos cada vez mais detalhadamente diante das telas e dos espelhos.
As aulas remotas em regime emergencial covid-19 explicitam de forma inequívoca uma realidade já sabida. Algo que antes estava meio turvo entre as paredes das escolas e das salas de aula ou sob atenção de poucos. Esses são os locais onde professores desempenham um papel heroico ao tentarem superar as limitações impostas pela realidade socioeconômica dos alunos. Docentes que se dedicam muito, mesmo quando as condições de trabalho não favorecem esse esforço.
O que vemos hoje com maior clareza é algo que já gritava em frente aos nossos olhos. A crise de aprendizagem e a desigualdade de acesso às TIC não são problemas novos. Ao mirarmos o espelho digital que a EAD revela “nos vimos em um mundo doente”, como cantava Renato Russo. Uma realidade já contaminada há anos por um mecanismo perverso de reprodução social.
As perspectivas indignadas à triste imagem da educação que o espelho digital insiste em nos mostrar podem se tornar o germe de uma transformação que é urgente, necessária e precípua à construção de um futuro menos impregnado de um passado marcado pela desigualdade.
Sobre o autor
Luciano Sathler é doutor em Administração pela FEA/USP, membro do Comitê de Educação Básica da Associação Brasileira de Educação a Distância e do Conselho Deliberativo do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Referências
MOORE, M.; KEARSLEY, G. Educação a distância: uma visão integrada. São Paulo: Thomson Learning, 2007.