*Por Renato Bulcão de Moraes
Quando a pandemia obrigou todos os professores a adotarem equipamentos para mediar suas aulas, o paradigma da educação a distância finalmente se tornou dominante. Mas muitos alunos fecharam suas câmeras e microfones, e se recusaram a interagir com os mestres.
Através das ferramentas de mediação, as aulas presenciais foram comparadas imediatamente com os vídeos do Youtube. E com as menosprezadas disciplinas online que as universidades privadas adotaram para diminuir custos com professores.
O resultado é que até mesmo as disciplinas online, que geralmente são compostas de uma videoaula, seguidas por textos com o conteúdo da disciplina e questionários de múltipla escolha, se mostraram mais interessantes do que professores falando horas a fio em primeiro plano.
Além disso, enquanto os professores falavam, e em sua maioria eram vistos e ouvidos através de telefones celulares, os alunos com câmeras desligadas estavam navegando. Nada diferente do estado de divagação que todo aluno já experimentou numa sala de aula presencial.
Mas agora com uma vantagem, pois quem não entendia uma palavra da explicação do professor sobre o tema, encontrou logo uma resposta na Wikipedia, ou mesmo um link de outro professor mais preparado para explicar o assunto através da mídia.
Paradigmas na educação
Em 1962, Thomas Kuhn publicou “A Estrutura das Revoluções Científicas”, quando demonstrou que na ciência os pesquisadores avançam um campo de conhecimento através da adoção de paradigmas. Um paradigma é uma estrutura de crenças que congrega métodos e teorias científicas.
Kuhn percebeu que a ciência avança quando a maioria dos cientistas concorda em adotar um novo paradigma, substituindo um antigo que esgotou sua possibilidade de novas descobertas.
Na Educação, John Dewey na virada do século 19 para o 20, e Jean Piaget dos anos 20 até os anos 60, além de muitos outros, perceberam que a educação era uma atividade sociocultural de ensinar conhecimentos e conceitos especializados sobre o mundo.
Dito de outra forma, em geografia, uma montanha é decorrência de um deslizamento de placas tectônicas, e um vale, o trabalho das águas de um rio cavando a rocha através de milhões de anos. Até o século 19, montanhas e vales eram meras criações divinas, que serviam como referência para demarcação sócio-histórica das culturas.
Não apenas acidentes geográficos, mas a própria fauna e flora eram entendidos como tal: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. Tudo era referido como um valor que construía uma visão de mundo. Poucos percebiam então, que a educação é um sistema. Toda cultura combina uma forma de educar, originalmente pensada para transmitir os conhecimentos necessários para se estar em determinado ecossistema.
O que crianças esquimós aprendiam, era diferente do que as crianças amazônicas aprendiam, que era diferente do que crianças francesas aprendiam. Na medida em que cada território era povoado por línguas e linguagens diferentes para dar conta da sobrevivência, parecia que a educação em cada país tinha de ser diferente.
O que unia os países do Ocidente era a religião, pois na cristandade, a flora, a fauna, todos os acidentes geográficos e demais coisas vivas ou inanimadas tinham sido criadas por Deus. Mesmo com variações, a crença cristã não discutia a origem das coisas. Mas depois de Charles Darwin, ficou difícil para os cientistas do século 19 aceitarem impassíveis a onipotência criadora.
Dewey foi o primeiro a perceber que a maior parte do que se ensina é ideologia. Ele percebeu que era necessário fazer a ponte entre o que se ensina e o que se vive. Caso contrário, as matérias como física, química, geografia e todas as exatas, se limitam ao equivalente a aprender uma língua estrangeira, sem nunca visitar o país na qual é falada.
Piaget percebeu outra diferença: desde o nascimento, a cada ano de vida, temos a capacidade de aprender determinadas coisas. Hoje, verificamos que mesmo adultos quando vão aprender novos conhecimentos, regridem a estágios primevos.
Há centenas de exemplos, como pessoas adultas que tem dificuldade de aprender a dirigir, ou aprender línguas estrangeiras, ou até mesmo aprender como funciona um app no celular. É preciso brincar com o objeto de estudo, praticar até superar a dificuldade de entendimento do sistema que estrutura aquela disciplina.
Quando temos de entender por que alguma coisa é daquele jeito, e agir conforme a forma que se apresenta no mundo, tudo se torna contra-intuitivo. Mas nem sempre procedimentos sistêmicos são contra-intuitivos.
Passar uma linha pelo buraco da agulha é intuitivo, mas difícil. Então a maioria dos homens sabe que para costurar, deve-se passar a linha pelo buraco da agulha. Mas para eles isso é uma crença, não uma habilidade que se torna uma competência. Então percebemos que as ferramentas impõem limites.
A extensão do braço, seja um pedaço de pau ou de osso que aumenta a força de uma agressão, pode tomar a forma de uma vara, de um machado, de uma espada ou de um martelo. Todas são ferramentas com milhares de anos de existência, como a agulha. Mas a compreensão de seu funcionamento e aplicação – o sistema – não garante automaticamente a habilidade de costurar, de cortar uma árvore, de esgrimir, nem mesmo de bater pregos.
Os brinquedos que nos apresentam desde muito cedo, servem para nosso aprendizado dos sistemas. O entendimento de um sistema depende de uma compreensão proporcionada pela razão. Mas a capacidade individual de construirmos o entendimento através da razão, foi finalmente percebida por Howard Gardner como diferente para cada ser humano.
Antonio Damasio refinou esse entendimento, quando propôs que são os sentidos percebidos pelo indivíduo, que permitem a facilidade ou dificuldade do desenvolvimento de certas habilidades motoras finas, que de alguma forma são espelhadas na construção do entendimento.
Em outras palavras, para sentir saudade, há um aprendizado sociocultural dos sentidos, que faz com que a percepção do sentimento seja diferente de um alemão que expressa Sehnsucht, que pode ser traduzido para um inglês como “nostalgia”. É como se fosse a mesma ideia, espelhada por formas diferentes de sentir.
Ora, se podemos perceber a mesma ideia com sentimentos que variam a partir de nossos sentidos, aquelas que conseguimos entender nos conferem habilidades. As ideias que não conseguimos entender, aceitamos como crença, pois seus efeitos aparecem no mundo como algo que também afetam os nossos sentidos.
Assim, acreditar no milagre de um santo, não é diferente do que dirigir um automóvel. O fiel acredita que pedindo para o santo uma dádiva, se por acaso acontecer, é porque o santo atendeu. O motorista que não sabe como funciona um carro, mas acredita que apertando um pedal ele sai do lugar, se por acaso acontecer, é porque o motor funciona.
Quando os sentidos se dão conta que o desejo se torna realidade, nós acreditamos que o que acontece é realidade. Então por esse motivo, enquanto alguém próximo não morre numa epidemia, não sentimos nem medo, nem compaixão. Entender o funcionamento de um vírus, ultrapassa a compreensão da maioria de nós, pois não entendemos seu sistema.
Logo, apelamos para crenças para explicar a sua existência no mundo. Daí a negação de muita gente, pois se é crença, o entendimento da explicação do sistema é desnecessário, e utilizar ferramentas como máscaras e luvas não faz sentido.
Então percebemos que em muitas sociedades a educação, sempre obrigatoriamente sociocultural, tem como sistema a construção de crenças, porque não incorpora a apropriação das ferramentas que são necessárias para entender a realidade. Isso ocorre por vários motivos.
Na raiz de todos eles, está o custo do próprio processo de ensino aprendizagem. Sempre há custo objetivo e subjetivo envolvido no trabalho de entendimento e da construção racional.
Para aprender como funciona uma alavanca, precisamos de uma haste forte, e de um objeto a ser deslocado. Sem isso, a compreensão de uma alavanca e suas fórmulas é tão eficaz para a atuação na realidade, quanto uma oração. Para uma pessoa cujos sentidos não experimentaram e catalogaram o que é comprimento, densidade, volume e peso, as fórmulas são uma abstração.
Isso significa, como bem percebeu Dewey, que simplesmente ensinar visões de mundo cientificistas, sem que se aprenda com isso o motivo da estrutura das ferramentas que usamos para corroborar essa visão de mundo, é uma perda de tempo.
Se você ainda não entendeu o que estou escrevendo, pense num jogo de facas de cozinha. Você sabe de fato, para que serve cada modelo de faca? Ou simplesmente pega a primeira que está afiada para cortar a carne que está na sua frente?
Se ainda duvida da especificidade de uma ferramenta para atuar uma transformação no mundo, tente cortar carne com uma faca de pão, ou vice-versa. Nesse momento vai perceber que quando falta a ferramenta correta para a função proposta, isso significa um custo da aquisição para poder pôr em prática um determinado processo. É o que acontece com a educação.
Quando temos um sistema de educação que não incorpora o processo de ensino aprendizagem de determinada ferramenta por falta dela, literalmente temos um professor tentando nos fazer acreditar na sua utilidade e função. Então aprendemos o que são elétrons, mas não entendemos que nossos computadores e celulares funcionam porque os elétrons pulam de um átomo para outro.
Então, na falta de entendimento, precisamos decorar. Fazer uma prova de química, ou dizer de cor uma passagem da bíblia, se tornam o mesmo procedimento. Por esse motivo que comportamentos estimulados por ferramentas são comandos previstos por sistemas.
Mas os programas que fazem funcionar os computadores e os celulares, estão muito longe da realidade dos professores tradicionais. Atolados em centenas ou milhares de regras que precisam ser decoradas, como os tempos verbais de verbos irregulares, as fórmulas de equações, ou os teoremas geométricos, os professores acabam sem saber para que serve tudo isso no mundo real. Ou você lembra para que finalidade prática foi construído o teorema de Pitágoras?
Esse afastamento entre o conhecimento e a realidade ainda é considerado no século 21 no Brasil, educação de qualidade. O novo paradigma da educação, novo normal da educação se preferirem, diminui o custo dos recursos para podermos criar o entendimento.
Temos centenas de imagens e demonstrações do que é uma faca de pão, e sua diferença para uma faca de carne. O aluno está limitado na maioria dos casos a dois sentidos, a audição e a visão. Mas pelo menos esses dois em conjunto são mais eficazes do que a pura imaginação do aluno, no esforço de objetivar as palavras dos professores.
Nesse momento, as ferramentas disponíveis, tais como gravadores de imagem e som, editores de vários tipos de linguagens e mesmo tradutores de línguas, começam a eliminar as barreiras socioculturais. Podemos aprender matemática com norte-americanos, cozinha com franceses, biologia com japoneses ou música com africanos.
Nossas escolhas pessoais se fazem através de nossos sentidos, que permitem a percepção lógica decorrente, que permite o nosso entendimento. Quem está limitado a ensinar crenças, sofre com as possibilidades ofertadas aos sentidos de seus alunos.
A realidade não se conforma apenas àquilo que ele ou ela conseguem fazer o aluno imaginar. O aluno da aula presencial, se não for proibido, pega o celular para saber se você está dizendo o que deve, ou se está inventando. Acontece cada vez mais em sala de aula.
Novas formas de ensinar
Por último, a Internet está facilitando e barateando a forma de aprender como funciona um motor. Ou como os elétrons produzem cargas elétricas e são controlados para gerar a base da informática. Portanto, os professores precisam reaprender a ensinar.
Não basta mais falar e falar para convencer, mas explicar para os alunos o que estão vendo e ouvindo. Para isso é necessário utilizar as ferramentas que barateiam o acesso aos sentidos, visão e audição, que são os computadores e celulares.
Os celulares e tablets permitem inclusive a incorporação do tato. Isso não significa que lápis e cadernos estão obsoletos. Machados não se tornaram obsoletos por causa da serra elétrica. Apenas são usados em situações mais específicas. O futuro próximo sugere um novo ajuste, iniciado por uma ferramenta virtual de sistema, que cada dia mais empurra as pessoas para uma mesma percepção sobre a realidade.
Larry Tesler inventou por volta de 1973 o conceito de copiar e colar. De certa forma, reintroduziu a nossa experiencia didática do antigo “ditado”. Você deve saber reproduzir o que seu mestre pede. Por outro lado, trouxe para o usuário o poder de tratar o conhecimento codificado em textos como blocos de Lego. E assim liberou as possibilidades infinitas de reconstrução do texto.
Por enquanto seu uso está limitado ao que chamamos de plágio. Mas em breve veremos surgir no âmbito do novo paradigma da educação, formas inovadoras decorrentes de milhões de experimentações que fazemos com ela diariamente.
Assim como a alavanca evoluiu de um galho de árvore para máquinas que mal lembram o seu princípio, um dia teremos a evolução da construção do conhecimento a partir de uma utilização criativa dessas ferramentas virtuais.
Assim, professores devem lembrar que “normal” não é algo novo ou velho, mas apenas uma das distribuições de probabilidade mais utilizadas para modelar fenômenos naturais. E nosso comportamento na pandemia, é um desses fenômenos.
Sobre o autor
Prof. Dr. Renato Bulcão de Moraes é formado em filosofia pela USP, mestre em Comunicação pela USP e doutor em Educação pelo Mackenzie. Participou da Escola do Futuro com o Prof.Fred M. Litto desde 1995. Trabalhou na Fundação Padre Anchieta, Fundação Roberto Marinho e foi professor na USP. Hoje trabalha no EAD de instituições privadas. É pioneiro em aulas pelo celular com trabalhos publicados no Brasil desde 2007, e também na Índia, na China, na África do Sul e nos Estados Unidos.